sábado, 16 de julho de 2011

Fluidificar

Não venho aqui cantar, senhoras e senhores. Muitos antes de mim vieram e cantaram seus sítios. Me ponho diante de vocês mais como quem lamenta. Sei que os enfada ouvir as lamúrias de um velho homem, mas é esse meu caminho e não disponho de outro. Tentarei ser breve.
Foi-se o tempo em que se tinha fé. A crença cega em um bem maior foi substituída pela necessidade quase fisiológica de o real impressionar os sentidos. Pode-se isso ser justificado? Quem sabe a fé seja uma cota, que cresce quando comprovada, mas igualmente diminui uma vez que se abusa dela.Foi-se o tempo em que se tinha fé. Lembro-me de como era ele. A imagem que me vinha ao olhar adiante era de uma alvorada. Só se viam os primeiros raios de sol, aquela luz fria que aos poucos se aquece. O céu era azul, mas um azul leitoso, ainda por se encorpar. O sol em breve surgiria, tomaria os ares e de lá jamais sairia.
Era essa a imagem que eles nos passavam, quando a nós vinham. Era o tempo das promessas, do sonho. Foi quando a gente pôde sentir que de fato podia ser alguma coisa. Algo grande! Eu, por mim, via luz.Mas hoje só vejo chuva. Os caminhos adiantes agora enturveceram, perdidos nos buracos que os preenchem. Hoje choro pelas minhas cidades terem perdidos a chance de serem o que poderiam. Sei o que vocês esperam. Querem que todos cantem suas origens. Mas como posso eu, se tudo o que vejo são as mazelas, multiplicando-se? Outros podem cantar grandezas que não nos pertencem, ou que são engrandecidas demasiadamente sem o real mérito.
E por isso não canto; lamento. Lamento pelo sonho ter acabado, diluído em água de chuva. Lamento pelo meu povo, que não mais se olha, não mais se esforça, sequer se importa. E assim, em meio à nossa indiferença, diluem-se minha Olinda e meu Recife, se dissolvem, viram espuma. E nós jogamos tudo no esgoto.

2 comentários:

  1. Depois da chuva, sei bem, vem a época da colheita. A chuva destrói algumas culturas, mas fazem outras florescerem, sei bem. Sei também que o fim nunca é o fim, assim como nenhum começo é propriamente o começo, porque sempre tem o antes do antes. Como terá o depois do depois. Se vira espuma, um pedaço virar ar, que flutua e cairá de novo. Se um pedaço vai pro esgoto, na certa desembocará em algum lugar, quem sabe melhor, quem sabe pior: diferente. A cidade, as cidades, são movimento vivo. E por mais que se empoere, e se empoera, há pessoas morrendo e nascendo. Há pessoas novas nascendo. Nascendo nessa pobreza, sujeira. Nascendo com sonhos e asas. Os heróis já foram crianças e quando todo mundo dizia: já foi, eles diziam: ainda vai ser.

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  2. "Quem sabe a fé seja uma cota, que cresce quando comprovada, mas igualmente diminui uma vez que se abusa dela."

    Achei esse trecho, em particular, tão perspicaz!

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