segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Fatalidade.

            Eu ia andando rumo à parada de ônibus, como de costume. Já não há quase nada nesse itinerário que me seja plenamente visível: o costume vai cegando os olhos. Sou cega, por exemplo, para o lixo acumulado na rua, para o canal onde despejam esgoto – para isso que chamam indiscriminadamente de “a realidade”. Não que tudo me pareça bom, é só que a gente aprende a lidar com o que tem...
            Já na parada, um rapaz, pouco mais velho que eu, vinha acompanhando um senhor de muletas. O aspecto de ambos era de simplicidade, traziam malas pequenas nos braços. Escutei que estavam esperando o Curado, para ir para a rodoviária: voltavam para o interior. Após alguns minutos de espera, parou um CDU/Boa Viagem. Os dois apressaram-se a subir.
Fiquei olhando, um pouco desconsolada, enquanto uma outra mulher os detinha. Nada havia de absolutamente incomum naquela cena: apenas duas pessoas pobres tentando, às cegas, pegar o ônibus. Mas era como se, pela primeira vez, eu me desse conta de algo muito grande, muito sério. É claro que uma pessoa nasce sabendo que existem crianças passando fome, existem mulheres convivendo com violência doméstica, existe pobreza, existe exclusão, existe analfabetismo – mas, meu deus, “crianças passando fome” é quase uma abstração. É algo que se lê em estudos socioeconômicos, um dado, uma porcentagem. O que conhecia eu de miséria, de pobreza, de analfabetismo?
Aquilo foi tomando conta de mim: de início era uma melancolia, uma vontade de chorar, de repente era vergonha, era culpa. E que direitos eu tinha de me apiedar? Era como se me tivessem despido e me apedrejassem em praça pública: cada pedra uma conscientização tardia... E também aquilo de nada adiantava. Chorar, sentir culpa, apiedar-se? Só mais uma maneira de se consolar, para esquecer mais rapidamente.
Meu ônibus chegou. Da janela, encarei por alguns instantes aquele rapaz, não muito mais velho que eu. O mundo pode ser visto como artes de um dado quase esférico jogado ao acaso: podia ser comigo. Quer dizer, podia ser com qualquer um – daí se chamar tudo de fatalidade... Fiquei me perguntando que consciência ele, o rapaz, tinha daquilo. Meu avô me dizia que, quando menino pobre no interior, pensava que a morte devia ser muito ruim, porque já não daria mais pra comer feijão com farinha – eu achava aquilo hilário. “Feijão com farinha, voinho? E o senhor gostava?”
Enquanto o ônibus partia, curiosamente, não me ocorreu que é provável que eu nunca torne a ver aquele rapaz.

2 comentários:

  1. E muitos outros passam por nós, com histórias tão ricas quanto. E nem damos atenção.
    Mas esse te tocou a ponto de você escrever sobre ele. Você também tocará outros.

    ResponderExcluir
  2. O problema é que sempre se quer mais do que a sensibilização... É essa necessidade de mudar alguma coisa que não lhe deixa em paz. E a gente até muda alguma coisa, mas será que é suficiente?

    ResponderExcluir