segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O gato e o novelo


Se algum humanóide conseguisse sentir, por pelo menos um dia, o que é viver num mundo literário, instantaneamente mandaria eximar todos os críticos literários do mundo.
Afinal, assim como não há para o seu vizinho a necessidade de se fazer interessante para ter a vida dele observada, não há para nós, personagens, a obrigação de sermos agradáveis, receptivos e pacatos. Até porque alguns de nós são até bem resmungões, uma vez que não é nada interessante ser fisgado da Transcendência (um dos mundos pelos quais gostamos de visitar, embora os Confins nos atraiam também, já que somos bastante tímidos e obscuros) por anzóis de "insights". E, como se esse processo não fosse doloroso o bastante, deve-se, ainda, compenetrar em várias cabeças simultaneamente -- e ainda correr o risco de se dissipar ou ser eivado por uma delas, devido a inospitalidade que algumas podem possuir com os pensamentos.
Pois foi por conta da indagação dos humanos da verossimilhança de novos mundos que fiz um prefácio tão longo e de teor tão catártico. Estou magoado e peço que aceitem como verdade a história que lhes conto como sentença de desculpas! E tentem entender que estes mundos não são fáceis...:

Estava eu, em minha semana de estudo de humanóides, sentado em um sofá, com um desenho de uma televisão ligada. Tudo bem, temos raizes semelhantes dentro da esfera do pensamento, mas me senti tao mal hospitalizado pela minha conterrânea: minha cabeça ficara tão hermeticamente fechada, de modo que uma simples e banal conversa entre um novelo e um gato me faria tomar um grande susto.

- Chega, de hoje em diante não vou tolerar mais suas lambuças! - berrava, subitamente, o que não se devia berrar... um novelo.

Eu nunca vi o gato tão incrédulo como estava agora. Na verdade, até demorou pra falar, coitado. Durante toda sua vida, engalfinhar-se com o novelo e arquitetar projetos nos sofás, por exemplo, era tudo que este pobre gato queria fazer. Podia fazer mais que isso, é verdade. Mas ousar interferir na "organização" de suas lacunas mentais era muito deselegante, e gato sempre foi um bicho muito fino.

- Mas peraí, pensei que você gostava disso. E que nos gostávamos! Essa rotina que vivíamos traçou uma sentença de fidelidade...
- É, mas agora, com mais de 47cm cortados de lã, andei refletindo sobre o meu resto de matéria configurada no plano imaterial.
- ...
- Digo, não vejo mais sentido em nada...
- ...

Se alguém pudesse perceber o quão eletrizada estava a lã daquele novelo, perceberiam a angústia dele ao dizer a próxima confissão

- Não quero enrolar ninguém, nem ser mais enrolado! É isso.

De repente, a cabeça do gato doía e ele precisaria ter que apagar informações sobre suas plantas de construção e seus diversos projetos (cuja a projetação era algo que nem mesmo o novelo nunca soube -- e desconfiamos que essa informação pode influir no fim da estória... ou não). Era mesmo uma pena apagar anos de engenhosidade, mas o gato necessitava de espaço na sua cabeça com o novo problema que surgia para pensar (e ele realmente não queria recorrer à deselegância para com seus espaços vazios.)

- Mas... isso quer dizer que você vai deixar de ser um novelo.
- Como?!
- Digo, isso é inerente a você, sabe - o gato procurava desenvoltura em seus argumentos que compatisse com o animal brilhante que se julgou ser naquele momento - É da sua natureza. Se você não fizer tudo que você faz, sabe, acho que ocorre um desequilíbrio material...
- De onde você tirou isso?!? - eletrizava-se o novelo
- ... Uma desordem natural das coisas, sabe. Há mundos em que nem devíamos tocar neste assunto!
- Pois estou farto, tênue e curto! Não vejo razão para dar razão à razão. Quero sair de mim, quero sentir uma veia poética e dela embriag...
- AAAAAAAAAAH - interrompia o gato - acho que entendi o seu problema.

O novelo estava tão, mais tão eletrizado que, dentre os parâmetros da Física terrestre, jamais se poderia explicar o porquê dele ter soltado algo parecido com um pequeno rosnado (mas que, devido a sua fragilidade e tenuidade, se confundiria com um soluço)

- Literatura demais! - dizia o gato - Português também, né? Me admira muito um novelo como você ter desvendado os mistérios da língua - parava um pouco pra se lamber - mas, diante do teor onírico que o mundo literário tem, aprender a leitura com o cunho metalinguístico que o texto tem é coisa que qualquer asno, hoje em dia, pode fazer - parava e debruçava-se com o corpo pra cima, lambendo sua barriga, cujo pêlo orgulhava-o de tão macio - esses narradores de hoje em dia... são tão aventureiros, não sabem os perigos dos textos metalinguísticos para quem está inserto nele!
- Nã... não entendo - rosnava o novelo, que agora se desenrolava sozinho.
- Funções sintáticas, sabe. Tem gente ou coisa que não se contenta com a sintaxe, quer ir além: quer a semântica.
- Você está querendo dizer, por exemplo, que não só queremos o sentido da vida como todas as entrelinhas que ela puder trazer?

O gato pertubava-se com aquele novelo. Ele já havia passado dos seus 47cm desenrolados em poucos minutos. Mais um pouco ele deixava de ser, justamente pelo fato de ter respeitado a natureza de se ser. Quando desenrolado, porem, o gato jamais permitiria desordem na sala e, certamente, daria um fim no que sobraria de lã.

- Não, estou dizendo que as entrelinhas são o que existem. As linhas, se é isso que você procura, não. Digo, há a sintaxe da coisa, contudo, quanto mais palavras descobrimos, mais nos revestimos de um carapaça toda delas. E aí começamos a querer o sentido literal de tudo, quando, na verdade,...

O gato olhava para o resto de 10 cm de lã que ainda restavam enrolados. Se o novelo pudesse ter um ataque cardíaco, ele estaria tendo um agora, mas ele não podia, pois só devia enrolar e desenrolar.

- ... não é o "literal" que constrói o concreto. - terminava o gato.

Se o novelo pudesse suspirar antes de dizer, certamente o faria:

- Não é à toa que você não defende as palavras, você não conhece as certas: não sabe bem o que fala.

E o gato acabou logo com tudo isso, até porque, misteriosamente, novelos eletrizados (e que rosnam) costumam fazer muito mais sujeira do que os normais.

Isso é o relato de um dia comum, mas é tudo que pude te oferecer agora. Não sei, até então, se tive compaixão pelo novelo ou pelo gato. O que sei é que fui beber um copo d'água e fui fisgado até aqui, aí e ali -- e provavelmente não por um "insight", mas por algum "tédio".
Tenho a impressão que meu ponto de vista ficará brando e enrolado como uma lã. Mas nada posso fazer, afinal sou personagem e irei me dissipar neste ponto final.

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